As manifestações de junho de dois mil e treze apresentaram uma interrogativa ainda não compreendida pelas classes conservadores da sociedade, uma afirmativa por parte de toda sociedade incluindo esta mesma classe conservadora e uma negativa histórica.

 Famoso por suas telenovelas, samba, mulata e futebol, o Brasil dos brasileiros que surpreenderam o mundo nesses últimos meses nada entendeu dos reclamos populares que são muitos. Porém nesse discurso aparentemente heterogêneo apresenta-se uma voz uníssona onde o povo, passivo e estafado, reclama por mais direitos. 

  Mas, quais direitos? 

 Vemos nas manifestações,  cada um brigando por seu umbigo, pela sua tribo, pelo seu gueto. Uma lua justa, já que esse é o primeiro momento histórico do Brasil em que o povo reivindica seu direito de indivíduo e sua liberdade constitucional ao qual o Estado, pressionado, responde aos novos argumentos e questionamentos com a velha resposta ignorante; a violência física. 

 Não bastasse a violência física proporcionada pelo Estado à absolutamente todos os cidadãos politicamente ativos ou não, vivemos a já clássica violência psicológica, promovida pelos meios de comunicação de massa, que ganha eco nos discursos das classes mais conservadoras da nossa sociedade. 

  É certo que para mudar basta querer, ter vontade de mudar. Vontade essa que sempre é corrompida pelo ponto de vista de cima. A fragmentação das classes sociais em grupos sociais culturalmente diferentes cria um distanciamento até mesmo entre aqueles pertencentes a mesma classe econômica. Aqueles que não pertencem as classes regentes, que formam uma única casta, estão fadados a se isolarem cada vez mais socialmente. As inúmeras vozes de diversas classes sociais em grupos culturais diversos camuflam as velhas questões étnicas-religiosas, anteriormente com características de sociedades análogas homogêneas. Não cabe nesse momento discutir a individualização do ser promovida por diversos contextos históricos desses últimos três séculos, porém cabe discutir-mos o porquê de todos esses grupos  supostamente "independentes", ou melhor, culturalmente diferentes terem resolvido rebelar-se todos ao mesmo tempo.

  Na contra-mão da voz do povo vem a voz do Estado e todos aqueles que ele defende; construtoras de contratos duvidosos, meio de comunicação monopolizador e a eles mesmo, ou seja, a velha oligarquia nacional. 

  Ao usarem a força do Estado contra os cidadãos, usando do grande meio de comunicação para praticar a política do medo e terror apresentando imagens de jovens, antes esquecidos e barbarizados pelo Estado e seu cacetete, para monopolizar a famosa opinião publica,  acabam por dividir as manifestações entre pacíficos e vândalos. Os vândalos seriam aqueles que em outras épocas seriam chamados de radicais, ou seja, são os jovens utopistas que talvez sejam os únicos em todo esse movimento caótico que tenha um discurso com real apelo político-social. Infelizmente, se há barbárie, há de ambos os lados e é devido ao fato do Estado falhar constantemente seja na educação publica, na saúde publica ou na segurança publica que nunca houve pra quem é pobre. 

  Reduzir as vozes do povo e imprimi-las em imagens de jovens rebeldes, que repito, em qualquer época da história moderna/contemporânea fariam o mesmo, faz-nos refletir no quão a educação é falha no Brasil através do eco dado a fragmentos sociais que se identificam com o discurso conservador. Esses que dizem que o movimento dos Black Blocks esvaziam o conteúdo das manifestações que vêm adquirindo certa unidade, na verdade rompem a real unidade do discurso e da luta pelo fim de uma sociedade de privilégios. Assim, repete-se um discurso pré-formulado e impactado pela produção da imagem conduzida/editada que ecoa através do discurso pacifista que só vem a favorecer  àqueles que estão no poder e constituem uma casta.

  Não defendo a depredação por depredação, porém esquecemos que estes jovem que andam mascarados e que a cada confronto são demonizados pelos agentes de produção de opinião, são os mesmos que sofrem com a falta de uma educação publica, pela falta de uma estrutura familiar, pois muitos viram seus pais serem mortos ou presos injustamente, suas mães fazendo sabe-se lá o quê para dar o que comer, seus irmãos morrendo nas guerras de narcotráfico. 

Curiosamente são estes mesmos jovens ignorantes, vândalos, baderneiros, que tem a visão mais ampla de toda discussão em pauta, pois são eles os que mais sofrem com a truculência, barbárie e vandalismo promovido pelo Estado. 

 O grande fator da panela de pressão ter estourado se encontra na incerteza de futuro que se desenha a todos os jovens.  Há de recordar que movimentos como Black Block onde até a depredação tem discurso, nada tem a ver com a revolta social que vivemos. Eles, os BB, só são mais organizados e se transformaram em alvos por desenterrarem ideologias sociais que desestruturam a ordem vigente, tornando-se assim, os marginais.

  Numa sociedade de privilégio onde todos são marginais, o povo vandalizado pelo Estado ganhou um novo judas onde pode projetar seus desejos e repulsas. Assim como seus atos, chamados pelos conservadores de vandalismo, são símbolos de uma época, a própria existência do movimento passa-se a símbolo; de luta para uns, de "baderna" para outros, do caos da atualidade!

  A ironia se encontra quando vemos jovens, muitos menor de idade, de classes "burguesas", mesmo burgueses, comunistas, anarquistas, liberais de todos os tipos (menos conservadores), vestindo-se de preto, tampando suas caras, destruindo símbolos que promovem seus estilos de vida individualistas e seus guetos culturais. 

  No momento histórico em que era para todos esses jovens estarem trancados em seus quartos jogando video-game, ou endividando-se com prestações em shopping como a maioria passiva da população, esses jovens resolveram tomar porrada por diversão (porque foi institucionalizado a cultura do confronto entre sociedade x policia) e por sentirem-se parte de algo maior. 

 O discurso fragmentado só existe para aqueles que convém com uma sociedade de privilégio, para aqueles que sofrem da velha síndrome do vira-lata e cospem em cima do próprio povo por não compreender seu processo histórico, para aqueles que sobem dois degraus e perpetuam os discursos nocivos e fomentam o tamanho disparate social que vivemos, resumindo, para aqueles que acham que só Deus pode mudar a humanidade, e esquecem que só o homem ajuda o homem e o quanto mais próximo de Deus ( que Deus é esse que afasta?) mais longe do  homem ele se encontra. 

 Se você conseguir sublimar o discurso de fragmentação dos grandes meios de comunicação, verás que o demoníaco grupo de jovens ateus e anarquistas, os Black Block Tupiniquins,  nada mais é que um símbolo contemporâneo de uma luta por uma sociedade de direitos, coisa que o Ministério Publico, o Tribunal Superior de Justiça e as Câmaras (que deveriam ser populares) fazem questão de afirmar o quão necessário é esse tipo de luta.


José Mauro Pompeu _ 10/2013
 
  Entendemos a ética como uma ciência que se dedica aos estudos dos valores morais e princípios ideais do 
comportamento humano. A ética permeia todos os relacionamentos e ambientes humanos e, por conseqüência,
o ambiente de trabalho.
  A significação dada a ética no trabalho vem sofrendo mudanças no decorrer do percurso histórico do homem
e sua vida em sociedade. Há uma nova ética do trabalho, inserida no continuo replanejamento da economia
política. Essa nova ética é caracterizada pelo uso autodisciplinado do tempo e o valor da satisfação adiada;
conseqüências de um mundo onde os objetivos virtuais sobrepõem-se aos objetivos reais, abraçando uma 
satisfação imediatista, já que o empregador visa lucros imediatos e a força de trabalho é efêmera, pois responde 
a esse imediatismo do mercado. Empregados cuja ação e o medo são causados pela incerteza do futuro, e esses
mesmos empregados não vêem meios de manter vínculos longínquos com seus empregadores.
  A história apresenta um progresso à liberdade do indivíduo, liberdade que se confunde com o individualismo
e o consumismo proporcionado pelo progresso dos órgãos de sustentação do modelo econômico capitalista.
  Na velha ética do trabalho, no Arcaico Clássico, podemos representa-la o modelo de Hesídio através da frase:
"quem adia, luta com a ruína"; já no Renascimento, o homo faber: homem como seu próprio criador, opondo-se 
ao caráter de processo histórico-religioso do cristianismo, onde o homem é modelo de Cristo. Com o advento do capitalismo,

 o utilitarismo vigoroso inglês associada ao protestantismo, ao qual o indivíduo tinha de moldar sua historia de modo a somar um todo significativo, o indivíduo torna-se eticamente responsável por seu próprio tempo vivido particular. 
  Para Max Weber, no modelo capitalista você deve adiar o desejo de satisfação e realização; "a maior disposição
de poupar do que de gastar passou do protestante para o capitalista como um ato de autodisciplina e autonegação".
O homem motivado não se encaixa mais na antiga imagem católica dos vícios como a gula e a luxuria, ele é 
intensamente competitivo, mas não pode gozar do que ganha. Ele é oprimido pela importância dada ao trabalho.
  Hoje, no mundo interativo, a ética de grupo vem em oposição à ética do indivíduo; "o trabalho em equipe enfatiza mais 
a responsabilidade mútua que a confirmação pessoal", porém esse trabalho em equipe nos leva ao "domínio da superficialidade degradante" que assedia o local de trabalho, deixando "o reino da tragédia para encenar as relações humanas como uma farsa". 
"Teatro profundo", assim interpretado pelo sociólogo Gideon Kunda, por obrigar  os indivíduos a manipular suas aparências 
e comportamentos com os outros.O responsável por administrar esse grupo, equipe, é o líder, assim denominado e analisado por antropólogos e sociólogos como Charles Darrah e Laurie Graham, como a palavra mais esperta no léxico administrativo;"o líder está do nosso lado, em vez de ser nosso governante. O jogo de poder é jogado pela equipe contra equipe de outras empresas". Esse líder transfere sua responsabilidade por suas ações, recaindo sob o jogador.
Essa equipe está inserida num cenário coletivo individualista, onde todos transferem suas responsabilidades 
em prol de um resultado imediato para um lucro que não é pessoal.  

José Mauro Pompeu (09/2012)

fonte: A corrosão do caráter, o desaparecimento das virtudes com o
novo capitalismo ( Richard Sennett ); capitulo 6: "A ética do trabalho, como mudou a ética do trabalho"

 

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

 
Vício na fala

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados

Pronominais 

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Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro


 
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A produção da globalização

Como só se pensa na crise financeira, a crise política, a crise social e a crise moral ficam em segundo plano e se aprofundam mais.

A globalização é produzida com uma série de ferramentas, como a unicidade da técnica, que faz com que todo o mundo tenha acesso às últimas novidades técnicas. A informação é outro expediente que permite a técnica única e que leva à convergência de momentos, ou seja, à ocorrência em todos os grandes centros dos efeitos das mudanças no resto do mundo. Mas essa informação é deturpada e também gera efeitos.

A unicidade da técnica e a convergência de momentos fazem com que a o único motor do mundo seja a mais-valia. Tudo se faz para aumentá-la e, em conseqüência, a competitividade aumenta.

O motor único também é possível graças ao conhecimento do planeta, à medida que é possível escolher lugares e materiais mais lucrativos.

Tudo isso leva a crer que o período por que passamos é uma crise, que requer uma mudança estrutural.

Uma globalização perversa

A globalização perversa é baseada em fábulas como a da comunicação global, do espaço e tempo contraídos, da desterritorialização e da morte do Estado. São fábulas porque a informação é centralizada e manipulada no interesse das grandes empresas. A diminuição de espaço e tempo pregada só acontece para poucos. A globalização perversa precisa dos territórios e dos governos internos para se manter e a morte do Estado, por sua vez, só aproveita às poucas empresas hegemônicas.

Todas essas fábulas são inculcadas nos cidadãos antes mesmo de qualquer ação.

A busca incessante pelo dinheiro leva à competitividade que geraindividualismos e violência. O discurso hegemônico, por sua vez, faz issoparecer inevitável. Sai de cena então a solidariedade e cresce o desemprego e a miséria.

Os homens não são mais cidadãos, mas meros consumidores, comandados pelas técnicas de marketing e design, impostas pela suposta “informação”.

A ciência (e aí se incluem as pesquisas eleitorais) é ideologizada e também cai num círculo vicioso para legitimar a própria ideologia de que é vítima.

Nascem daí a violências estrutural e a perversidade sistêmica, onde acompetitividade e a potência (falta de solidariedade ou prevalência sobre osoutros) puras, unidas à ideologia neoliberal, fazem parecer normais asexclusões sociais. Fala-se muito em violência da sociedade de nosso tempo,mas esquece-se que as violências que mais percebemos são apenas derivadas. A violência estrutural resulta da presença, em estado puro, dacompetitividade, da potência e do dinheiro. A essência da perversidade é acompetitividade, uma guerra em que tudo vale para conquistar melhoresespaços no mercado.

Na evolução das sociedades o progresso da ciência caminhava em direção ao da humanidade. A revolução industrial quebrou esse ritmo, mas as idéias filosóficas e morais da época conseguiram manter um contrapeso. O resultado foi o alcance do Estado Social. A globalização perversa ainda consegue quebrar esse processo e faz o homem retornar ao estado primitivo do cada um por si. Milton Santos entende, portanto, que o homem caminha para o progresso, mas há algumas falhas nessa caminhada.

Além disso, os avanços tecnológicos apenas servem aos interesses do mercado, sem consideração com os da humanidade.

Por outro lado, as grandes empresas passam a dominar o cenário político e chantageam governos para que concedam incentivos fiscais na instalação.

De todo esse processo advém a pobreza estrutural, excludente, que aideologia neoliberal (Hayek) insiste ser necessária, inevitável e natural e que, por isso, deve-se em alguma medida estimulá-la. Se a crise é estrutural, não são possíveis soluções não-estruturais. A ruptura como o sistema daglobalização perversa há de ser total.

Nesse quadro, o papel dos intelectuais é quebrar o pensamento único,fazendo a dialética, porque o globalitarismo só é forte se encontracontrapartida interna. Quer dizer, depende de cada país o modo com vai seinserir na globalização.

O território do dinheiro e da fragmentação

Antigamente as diferentes velocidades entre os Estados não separavam os agentes, pois a política compensava a diversidade, assegurando a soberania de grandes diferenças e conduzia ao enriquecimento dos direitos sociais.

A globalização traz a ideologia de que a fluidez é um bem comum, quando na verdade apenas alguns agentes podem utilizá-la. Imponto o ritmo, o mercado controlado pelas grandes empresas busca apenas expansão e não união. O mundo é forçado a se amoldar às vontades e necessidades dasempresas.

Como conseqüência, fragmenta-se o território, com as empresashegemônicas criando ordem para si e desordem para o resto. Em reação aesse fenômeno criam-se novas soberanias, como o país basco.

Na agricultura, por exemplo, há uma demanda externa de racionalidade, que leva à militarização do trabalho: deve-se seguir as regras hegemônicas da produção (soja, por exemplo). Isso leva à servidão e ao desemprego.

Por isso, diz-se que o campo é o lugar da vulnerabilidade e a cidade o da resistência. Esta característica da cidade pode ser explicada porque nela as racionalidades da globalização se difundem mais extensivamente, aindamais quando paralelamente há produção de pobreza. Mas ambos estãosubordinados às lógicas das empresas globais, que impedem as regulaçõeslocais. O que vale é a norma global. Daí criarem-se regionalismosexacerbados que ameaçam a integridade nacional. A vida acaba obedecendoàs lógicas exógenas.

Milton Santos percebe a necessidade de uma federação de lugares, a partir de células locais, uma regionalização não fragmentada para que se possa atuar na federação.

Outra dado que pode ser reunido é o das metamorfoses dos conceitos de território e dinheiro. O território passa a ser a identidade de determinado lugar, ao passo que o dinheiro não representa mais apenas elemento de troca, mas fator de avaliação das características de dado território. Como exemplo dessa constatação lembro os avaliadores de riscos dos países, que se especializaram em estudar o valor que determinados lugares tem na mercado internacional.

O domínio do dinheiro acaba tendendo a homogeneizações, que são contrariadas aos poucos pelas resistências locais. Na América Latina esse processo se dá através do macrocrescimento de algumas empresas. Esse crescimento satisfaz a busca dos governos neoliberais pelo aumento do PIB. Por isso, é necessária a decisão das minorias de participar ativamente do processo, decisão que fortalece todos os entes da federação.

O autor apresenta a teoria das verticalidades e horizontalidades. As verticalidades seria forças de ordens externas e superiores que atendem a interesses corporativos – pontos que formam “o espaço de fluxos”. O poder assim exercido leva o processo organizacional a se dar no ritmo dos macroagentes que não dão espaço aos pequenos. Esse modelo tem a característica de ser construído para ser indiferente ao seu entorno. Suga-se até não dar mais, depois, adiós!

Ao passo que se pode caracterizar as verticalidades como forças centrífugas, as horizontalidades são centrípetas; são forças que não são criadas por políticas estabelecidas, pois são fruto da adaptação a situações que exigem dos atores permanente estado de alerta.

São a contra-racionalidade, que contraria as racionalidades hegemônicas mesmo sem uma política uniforme. É o entendimento difuso de que as verticalidades não são boas. Por apresentarem essa característica, são propícias a formar solidariedades.

Essa luta de verticalidades e horizontalidades resulta num processo dialético que impede que o espaço de todos – o espaço banal – seja sufocado. Junto ao conceito de espaço Milton Santos dá o conceito de lugar: espaço em que se exerce a cidadania e se pode existir (p. 114).

A geografia revela que as aglomerações e as situações de vizinhança fazem com que as pessoas não se subordinem à racionalidade hegemônica, se entregando com mais facilidade às manifestações contra-hegemônicas, num movimento de baixo para cima. É a dialética da contra-racionalidade.

A escassez de recursos e a incitação ao consumismo fazem com que os

Limites à globalização perversa

mais pobres percebam sua posição e desvendem a mentira do discurso,permitindo o surgimento de variáveis ascendentes (que se impõem) elevando à desobediência. Assim, são postos limites à racionalidadedominante.

Desvendada a mentira, percebe-se que a imperatividade e unicidade da técnica não existem e não são possíveis porque as técnicas têm que guardar relação com o lugar que serão aplicadas. A política, no entanto, pode ser imperativa e até permitir a técnica única.

A vida cotidiana se opõe à técnica do just-in-time, porque respeita as diferenças e cresce com elas. As múltiplas formas do cotidiano são uma heterogeneidade criadora.

Com a produção hegemônica de necessidades e a incorporação de modos de vida também hegemônicos são criadas duas situações distintas: a escassez dos ricos, que quanto mais consomem, mais sentem necessidade deconsumir, ficando em permanente estado de escassez. Cria-se a rotina dafalta de satisfação – comprar um bom vídeo cassete não basta, então compra-se um DVD, que também não basta, e compra-se um home theater, que acaba sendo grande demais para a sala; então, faz-se uma sala maior e aí por diante.

A escassez dos pobres é diferente, mas tem melhores frutos. Como nãoconseguem e talvez nunca conseguirão consumir, por esse mesmo sentimento de escassez passam a buscar bens imateriais e infinitos, como asolidariedade, por exemplo. A escassez do pobre leva a novas descobertas eao entendimento do mundo.

Mas a pobreza não pode chegar à miséria, que aniquila. A pobreza éativadora de lutas e leva à tomada de consciência. Elabora-se assim apolítica dos de baixo, alimentada pela necessidade de existir e pela desilusão das demandas não satisfeitas. Parte-se para a rebeldia.

Os movimentos organizados, por sua vez, devem imitar o cotidiano dessas pessoas para se tornarem perceptíveis. Os partidos devem ser o espelho de seus eleitores.

A questão da classe média também é interessante. Ela teve seu apogeu e agora sente de perto a crise: antes era a maior beneficiária do crescimentoeconômico, mas agora não tem a força política de antigamente e sente aescassez e a insegurança de perto. Num primeiro plano começa a lutar porvantagens individuais que, com a tomada de consciência, tornam-se sociais e se identificam com os clamores dos pobres. Passam a ter a função deimplantar a democracia forçando o ideário e as práticas políticas.


 
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A própria população urbana, largada a seu destino, encontra soluções para seus maiores problemas. Soluções esdrúxulas é verdade, mas são as únicas que estão a seu alcance. Aprende a edificar favelas nas morrarias mais íngremes fora de todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhe permitem viver junto aos seus locais de trabalho e conviver como comunidades humanas regulares, estruturando uma vida social intensa e orgulhosa de si. Em São Paulo, onde faltam morrarias, as favelas se assentam no chão liso de áreas de propriedade contestada e organizam-sesocialmente como favelas. Resistem quanto podem a tentativas governamentais de desalojá-las e exterminá-las. Quem puder oferecer 1 milhão de casas, terá direito de falar em erradicação de favelas. Outra expressão da criatividade dos favelados é aproveitar a crise das drogas como fontes locais de emprego. Essa "solução", ainda que tão extravagante e ilegal, reflete a crise da sociedadenorte-americana que com seus milhões de drogados produz bilhões de dólares de drogas, cujo excesso derrama aqui. É nessa base que se estrutura o crime organizado, oferecendo uma massa de empregos na própria favela, bem como uma escala de heroicidade dos que o capitaneiam e um padrão de altamente desejável para a criançada. Antigamente, tratava-se apenas do jogo do bicho,que empregava ex-presidiários e marginais, lhes dando condições de existência legal. Hoje em dia é o crime organizado como grande negócio que cumpre o encargo de viciar e satisfazer o vício de 1milhão de drogados. Quem quiser acabar com o crime organizado, deve conter o subsídio ao vício dado pelos norte-americanos.Até então, o que temos são gestos vãos, de curta duração, incapazes de conter por si os problemas das cidades. É pensável uma reforma urbana. Hoje tão urgente quanto a agrária. É também pensável uma economia de pleno emprego, mas ninguém tem planos concretos, nesse sentido, que possam ser postos em prática.Outro processo dramático vivido por nossas populações urbanas é sua deculturação. Sua gravidade é quase equivalente à primeira grande deculturação que sofremos, no primeiro século, ao desindianizar os índios, desafricanizar os negros e deseuropeizar o europeu para nos fazermos.Isso resultou numa população de cultura arcaica, mas muito integrada, em que um saber operativo se transmitia de pais a filhos e em que todos viviam um calendário civil regido pela Igreja, dentro de padrões morais bem prescritos.A questão hoje é mais grave. A luta dentro dessa massa urbana é ferocíssima. Se associam,eventualmente, nos festivais, como o Carnaval e cerimônias de Candomblé, como paixões esportivas co-participadas e como os cultos de desesperados. Esses marginais não devem, porém,ser confundidos com a secular população favelada das grandes cidades, que de fato são suas principais vítimas.O normal na marginália é uma agressividade em que cada um procura arrancar o seu, seja de quem for. Não há famlia, mas meros acasalamentos eventuais. A vida se assenta numa unidade matricêntrica de mulheres que parem filhos de vários homens.Apesar de toda a miséria, essa heróica mãe defende seus filhos e, ainda que com fome, arranja alguma coisa para pôr em suas bocas. Não tendo outro recurso, se junta a eles na exploração do lixo e na mendicância nas ruas das cidades. É incrível que o Brasil, que gosta tanto de falar de sua família cristã, não tenha olhos para ver e admirar essa mulher extraordinária em que se assenta toda a vida da gente pobre.A anomia freqüentemente se instala, prostrando multidões no desânimo e no alcoolismo. Muitas vezes se deteriora, também, na anarquia, em gestos fugazes de revolta incontrolável. Um corpo elementar de valores co-participados a todos afeta, oriundos principalmente dos cultosafro-brasileiros, do futebol e do Carnaval, suas paixões. As circunstâncias fazem surgir, periodicamente, lideranças ferozes que a todos se impõem na divisão do despojo de saqueios. Essa situação é agravada por uma lúmpen-burguesia de microempresários que vivem da exploração dessa gente paupérrima e os controla através de matadores profissionais, recrutados entre fugidosda prisão e policiais expulsos de suas corporações.O doloroso é que esses bandos se instalam no meio das populações faveladas e das periferias,impondo a mais dura opressão para impedir que escapem do seu domínio. Isso é o que desejam muitas famílias pobres, geralmente desajustadas. Paradoxalmente, confiam é no crime organizado,que costuma limpar a favela dos pequenos delinqüentes mais irresponsáveis e violentos e põe cobro à caçada de crianças pelos matadores profissionais. Talvez, por isso, tanto se apeguem aos cultos evangélicos que salvam os homens do alcoolismo, as mulheres da pancadaria dos maridos bêbados, as crianças de toda sorte de violência e do incesto. Os cultos católicos, regidos por sacerdotes bem formados, raramente aparecem ali. Quem compete mais com os evangélicos são os cultos afro-brasileiros, que com hierarquia rígida e com sua liturgia apuradíssima abrem perspectivas de carreira religiosa e de vidas devotadas ao culto.Ultimamente, a coisa se tornou mais complexa porque as instituições tradicionais estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrinação. A escola não ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa fazendo a cabeça das pessoas. Impondo-lhes padrões de consumo inatingíveis, desejabilidades inalcançáveis,aprofundando mais a marginalidade dessas populações e seu pendor à violência. Algo tem que ver a violência desencadeada nas ruas com o abandono dessa população entregue ao bombardeio de um rádio e de uma televisão social e moralmente irrresponsáveis, para as quais é bom o que mais vende, refrigerantes ou sabonetes, sem se preocupar com o desarranjo mental e moral que provocam.